JUNHO ACABOU e eu nem sofri com isso. Sei que em alguns lugares as festas ainda teimam em sobreviver, mais por vício de calendário e pesquisa mercadológica do que por necessidade.
Considero obscena a decoração que as lojas comerciais promovem em nome de uma tradição que não mais existe, as bandeirinhas de papel fino, os balões armados com arame e plástico, as fogueiras de mentirinha, movidas a ventilador. No adro de algumas igrejas, também há movimento, mas sem empolgação, o lucro das barraquinhas mudará as telhas quebradas dos templos, alguns deles aos pedaços.
Não sei como as coisas se passam em outros sítios. Aqui, no Rio, é uma calamidade. Os jardins de infância faturam por fora em nome dos santos juninos, e os pais são obrigados a gastar os tubos com fantasias caipiras que as crianças acabam vestindo sem entender e sem amar. Até o presidente da República bota na cabeça um chapéu de palha em frangalhos e convida os ministros para um quentão oficial geralmente substituído por um uísque de 12 anos.
Da antiga e bonita tradição das festas de Santo Antônio e São João não sobrou nada, apenas a referência no calendário e a advertência anual das autoridades a respeito de balões e fogos.
Pois foi por aí que a festa acabou. Reconheço os motivos que obrigaram o governo, em seus diferentes níveis, a proibir balões. Mas que diabo, na minha infância, o céu ficava “pintadinho de balão” -como lembra a marchinha junina de Assis Valente. As casas eram mais frágeis, mais espaçadas, havia matagais em abundância na paisagem e mesmo assim os incêndios eram poucos.
Que me lembre, nunca vi incêndio provocado por balão, embora meu pai, nos anos de minha infância, fosse famoso baloeiro entre os baloeiros mais famosos. Foi talvez a única arte em que se distinguiu -nas demais foi um desastre.
Os preparativos começavam no início de maio, resmas de papel fino sueco -era o melhor e o mais resistente, de cores mais cintilantes e duradouras. Os balões se amontoavam pelas salas e quartos, pendurados em varas, em ganchos, em cima dos armários, deles saía um cheiro da cola de farinha de trigo e do papel importado. Ali eles aguardavam a noite mágica em que subiriam ao céu.
Murchos, coloridos e disformes, pareciam monstruosas fantasias de palhaços, sem alma, sem chama, à espera do momento em que entrariam em cena, no imenso espaço da noite de junho.
Mas dia 13 (Santo Antonio) ou dia 24 (São João), eles se erguiam, iluminados, varando o espaço majestosamente, enquanto aqui embaixo ficávamos, ao redor da fogueira, olhando atônitos aquela beleza que subia, frágil e poderosa. Eram enormes os balões, e belos.
Lá distante, da sala onde funcionava a primeira radiovitrola que meu pai comprara na Casa Édison, provavelmente a prazo, vinha a marchinha de Assis Valente na voz de Carlos Galhardo: “Cai, cai balão / não deixa o vento te levar / quem sobe muito / cai depressa sem voar/ e a ventania / de tua queda vai zombar / cai, cai balão / não deixa o vento te levar”.
Mas os ventos levavam os balões e eles sumiam na imensa enseada da noite. Mais um pouco e as fogueiras ficavam reduzidas a cinzas, onde se assavam batatas doces e roletes de cana. Enquanto isso, os balões ainda voavam pela madrugada, silenciosos, as buchas apagadas. Manuel Bandeira tem versos pungentes sobre os balões apagados das madrugadas, no poema que foi o primeiro que entendi e amei. (“Profundamente”).
Vivi a mesma experiência: acordava no meio da noite e pensava em todos os que estavam dormindo, profundamente, e de repente um balão apagado passava em silêncio pela minha janela, vindo de longe, cansado, sem glória, cumprindo o seu destino de balão. Todos estavam dormindo, menos eu, vigiando o céu, esperando que um deles viesse a cair em nosso quintal. Alvoroçado, acordava o pai e íamos juntos e orgulhosos apanhar a dádiva que o céu nos mandara.
Pois é. As fogueiras acabaram mesmo. As noites de junho eram as mais frias do ano. E as festas também estão acabando. Mas não posso deixar de lembrar os balões que nunca me libertaram de seu legado de tristeza, mansidão e fragilidade.